terça-feira, 2 de julho de 2013

O Paquete das Nove

    Havia um lagar por onde perambulava em suas noites solitárias quando criança. Ali se achava mais uma vez depois de tanto tempo. A casa dormia.A noite clara, logo teria sua luz substituída pela luz dia.Luiz Otávio não se recorda da última vez que tivera ao menos três horas de sono.Se antes era pelas noites de farra com outros peraltas,agora era por motivo bem mais nobre.Não que ele consentisse,mas o certo é que,pela primeira vez em seus trinta e poucos anos se achava deveras mordido por uma donzela.Estava ainda aturdido e inconformado com a novidade ,contudo já admitia a idéia de uma confidência.
Inúmeros eram seus colegas de pândega, mas à quem confiar tal fortuna?Não fosse ela moça de família e poderia seu coração achar repouso naquele cais , por alguns dias...semanas talvez.Não mais que isso.Não fosse ele de alma caprichosa e talvez não mais lhe perturbasse a mente aquele rosto formoso.A si mesmo havia jurado jamais entregar seu coração à uma pequena.Seria de todas.Mas quando a viu descer daquele paquete,foi como ver um anjo descendo de uma nuvem.Não era delgada como uma sílfide,mas podia imaginar a forma escultural sob o alvíssimo e longo vestido de tafetá.Estendeu o olhar até as mãos para ver se havia sinal de compromisso.Estavam cobertas por delicadas luvas da cor do vestido e não eram tão pequenas como as mãos da maioria das moças da corte.Um leve descuido da natureza,talvez.Longos e sedosos cabelos castanhos amarrados de forma singela por uma fita azul celeste.Os olhos cor de mel, o olhar plácido e distante.Lábios carnudos cerrados como uma fortaleza; sede dos mais secretos e profanos pensamentos.Pensamentos interrompidos de forma brusca, pela presença de dois cavalheiros que pareciam acompanhá-la.Disfarçou consultando o relógio como se esperasse por alguém,sem perdê-los de vista.Caminhavam lado à lado,os dois portando bagagem.Ela carregava apenas um a  maleta de chapéu.O mais jovem se despediu e tomou um tílburi.Ele respirou à larga,denotando certo alivio.Algum tempo depois,pode vê-la entrando num coche ajudada pelo outro cavalheiro que talvez fosse seu pai ou parente próximo. Ficou inerte por um momento a fitar o coche que se distanciava à pouco e pouco.Num lampejo de audácia,mandou sua natureza tíbia aos diabos e se pôs a seguí-los conduzindo a própria sege como fazia sempre que lhe ditava a consciência.
Empregar uma parte de seu tempo em observar o paquete das nove era algo de não compartilhar com o mais íntimo dos amigos,se conhecesse alguém nessa condição. Dedicou alguns minutos de seu tempo à recordações dos bons momentos da meninice,quando por muita vez escapava ao olhar materno para ir com alguns amigos ao cais.Ficavam por largo tempo a observar as embarcações em seu ir e vir infinito.O paquete das nove de onde desembarcava  grande número de estrangeiros,era o mais esperado. Se divertiam observando-os na forma de falar e trajar.Uns muito sóbrios,outros extravagantes,rindo e gesticulando.Atentos e curiosos terminavam por aprender alguns vocábulos.
A infância passou qual bólide,os amigos cresceram,mudaram ,se mudaram,Cristóvão, meigo e tímido,tornou-se criatura insossa e mequetrefe,olhos e  ouvidos, sempre atentos a fariscar qualquer coisa que lhe pudesse render algum motejo para o resto do dia.Bom parceiro de  patuscadas,mas nada confiável.Rodolfo Pausinni,filho de italianos,era o mais loquaz,agora discreto,lacônico e misterioso,este mudou-se do país.O Flávio Augusto,sempre pacato,não mudou muito.Dóçil e melancólico,meio abemolado apesar da voz grave o olhar ás vezes distante,como que proposital,deixa ao interlocutor a impressão de pouco interesse ou total displicência,para logo surpreendê-lo com uma resposta repleta de alento.Ele, Luiz Otavio dispensa apresentações.Inconseqüente,doidivanas incorrigível.De família abastada,nunca fora dado á parcimônia,vivia a dilapidar os bens da família sem sombra de remorso. Era como se a vida o tivesse transportado da infância para a atualidade ,negaceando-lhe a fase de transição.Não fosse o intermúndio imposto pelo preconceito,certamente acharia em Flávio um amigo e confidente      Enfim,voltemos ao lagar e aos devaneios de Luiz Otávio.Este seguia afoito o coche da bela estrangeira que certamente seria acolhida por alguma amiga ou parenta residente em Santa Luz.De fato, não muito longe dali o coche parou e os recém-chegados foram recebidos por um casal,com visível afabilidade.
Tomou nota do endereço e retornou ao alvorecer do dia seguinte,a sege a uma distância segura.A dama de seus sonhos teria ido á janela umas três vezes.Quatro.Ele havia contado .As ave-Marias,saiu em companhia da suposta parenta.A sege não as acompanharia em todo o trajeto.Dar-se -ia por satisfeito fazendo metade do percurso,ou o suficiente para lhes descobrir o destino.Seguiam em direção à capela.Ele tomou o caminho de volta.No dia imediato.deixou a sege no mesmo lugar.Desta vez apeou e seguiu em passeio fortuito pelos a arredores,passando em frente à casa.em dado momento sentiu seu coração imensa inquietação.Ergueu os olhos.Ela o fitava da janela.Olhares recíprocos,motivos diferentes.Ela,curiosa.Ele enamorado.Ela corou. Ele sorriu.Silêncio.Momento azado para as apresentações.” Luiz Otávio”.Ela sorriu.Ele sentiu-se recompensado.”Geneviève.Estou acompanhando meu pai.Veio à negócios”.Conversaram algumas veleidades e conveniências.Em poucos dias obtivera ele permissão para lhe fazer a corte A ela nada disse acerca de sua ocupação.Ao pai havia dito ter cargo público.Não deixara de todo a boemia,mas as farras eram cada vez menos freqüentes.Os amigos chegaram a cogitar a idéia de uma enfermidade.Negava,ria em disfarce.”Até o boêmio precisa de recesso”.Voltava cedo para casa,ficava horas rememorando a imagem da moça de semblante quase angelical.O olhar tinha um quê de Pallas Athena,seu riso era às vezes contido,chegava a iluminar suas faces sem contudo se aflorar,às vezes corria solto inundando todo seu ser de graça e luz.Fez-se resoluto.Não faria ouvidos moucos aos sinos da paixão.Em poucos meses deu-se o enlace.Viajaram logo após a cerimônia,para a suntuosa fazenda que ela recebera em dote.Notou-a meditativa,monossilábica e reticente.Enleios de recém-casada,pensou.O tempo,senhor absoluto e por vezes despótico,sem licença,se adona de tudo,descortinando os mais recônditos segredos sem sombra de compaixão,dá de ombros e se vai desdenhoso.Luiz Otávio lhe dera os ombros,e com riso de mofa,por muita vez;era momento de pagar com igual moeda.Ao cabo de algumas horas,estava ele de volta à casa materna.A sege à uma certa distância,para não alardear o retorno precoce.Com passos de gato pisando em folha,chegou finalmente ao lagar..A natureza à vezes titubeia e comete erros.Mas não paga por eles,para isso se serve dos mortais.Luiz Otávio,que nunca fora de se deixar atar pelas amarras do desespero,sentia o pânico se avizinhar.A vida sempre generosa com ele,enfim cobrava seu preço.”Oh ,natureza injusta,por que não a fizeste mulher?”O riso de menina,alma feminil,jamais seria um rapaz.Ele alí ,desolado e confuso,refém de um capricho dos deuses.Ela,vítima de um engano da natureza,tão-somente.O riso cândido, as faces de um Querubim,talhe elegante ainda que de formas generosas,seria toda ela feminina,não fosse aquele detalhe...que importa a matéria?Amava como mulher,vivia como mulher,sentia...era uma mulher.Acendeu um cigarro para afugentar as lembranças.Debalde. A fumaça no ar trazia-lhe imagens diversas com o rosto de Geneviève.Suspirou.Fechou os olhos com força.Abriu.Caminhou.Parou.A fumaça tecia figuras para  cosê-las em sua alma,uma à uma,como peças de mosaico.Ânsia de gritar à todo pulmão.Grito sufocado.Geneviève sorria.O rosto tinha agora feições de uma deusa de olhar lascivo.Esfregou os olhos.A imagem da deusa ia se desfazendo lentamente até transmutar-se em efígie diabólica.Apagou o cigarro,caminhou pelo jardim até agastar-se. Retornou ao lagar. Acendeu outro cigarro.As figuras dançavam no ar.Insistiam,acossavam,submetia-no à tortura de malho em  bigorna.O semblante do  anjo se tornara grave.A deusa tinha o olhar benevolente e estendia-lhe os braços.”sem ela eu não vivo”.O demônio ria,gargalhava,rodopiava em sua mente apontando outro caminho.”sem mim ela não vive”.A fumaça tecia o destino .
A casa era silêncio de se ouvir o cair de uma folha.A família,formada pela mãe já avançada em idade,a irmã,viúva jovem e um tio,irmão gêmeo da mãe , todos entregues ao sono dos justos,ainda sob o encanto jubiloso do momento das  núpcias.Somente no dia seguinte trocariam a veste resplandecente da felicidade pelo inexorável luto e o borbulhar do champagne em cada olhar se converteria em lágrima no momento em que alguém entrasse no lagar.
Silas Santos
 Mais no site: www.silasantos.recantodasletras.com.br
 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Livros de Silas Santos


Antologia poética (2013)pelo Grupo Editorial Beco dos Poetas e Escritores
 
Contos (2003) RG Editores
edição independente
Antologia dos namorados (2009)
Grupo Editorial Scortecci
Antologia da Escola de Escritores (1999)
Editora Mandruvá
 
 
Romance ( segunda edição,2013) Polo Printer

 
 
Antologia de crônicas,poesias e contos,volume I
 Grupo Editorial Scortecci
Romance (2017)poloprinter