Havia um lagar por onde perambulava em suas
noites solitárias quando criança. Ali se achava mais uma vez depois de tanto
tempo. A casa dormia.A noite clara, logo teria sua luz substituída pela luz
dia.Luiz Otávio não se recorda da última vez que tivera ao menos três horas de
sono.Se antes era pelas noites de farra com outros peraltas,agora era por
motivo bem mais nobre.Não que ele consentisse,mas o certo é que,pela primeira
vez em seus trinta e poucos anos se achava deveras mordido por uma
donzela.Estava ainda aturdido e inconformado com a novidade ,contudo já admitia
a idéia de uma confidência.
Inúmeros eram seus colegas de
pândega, mas à quem confiar tal fortuna?Não fosse ela moça de família e poderia
seu coração achar repouso naquele cais , por alguns dias...semanas talvez.Não
mais que isso.Não fosse ele de alma caprichosa e talvez não mais lhe
perturbasse a mente aquele rosto formoso.A si mesmo havia jurado jamais
entregar seu coração à uma pequena.Seria de todas.Mas quando a viu descer
daquele paquete,foi como ver um anjo descendo de uma nuvem.Não era delgada como
uma sílfide,mas podia imaginar a forma escultural sob o alvíssimo e longo
vestido de tafetá.Estendeu o olhar até as mãos para ver se havia sinal de
compromisso.Estavam cobertas por delicadas luvas da cor do vestido e não eram
tão pequenas como as mãos da maioria das moças da corte.Um leve descuido da
natureza,talvez.Longos e sedosos cabelos castanhos amarrados de forma singela
por uma fita azul celeste.Os olhos cor de mel, o olhar plácido e
distante.Lábios carnudos cerrados como uma fortaleza; sede dos mais secretos e
profanos pensamentos.Pensamentos interrompidos de forma brusca, pela presença
de dois cavalheiros que pareciam acompanhá-la.Disfarçou consultando o relógio como
se esperasse por alguém,sem perdê-los de vista.Caminhavam lado à lado,os dois
portando bagagem.Ela carregava apenas um a
maleta de chapéu.O mais jovem se despediu e tomou um tílburi.Ele
respirou à larga,denotando certo alivio.Algum tempo depois,pode vê-la entrando
num coche ajudada pelo outro cavalheiro que talvez fosse seu pai ou parente
próximo. Ficou inerte por um momento a fitar o coche que se distanciava à pouco
e pouco.Num lampejo de audácia,mandou sua natureza tíbia aos diabos e se pôs a
seguí-los conduzindo a própria sege como fazia sempre que lhe ditava a
consciência.
Empregar uma parte de seu tempo
em observar o paquete das nove era algo de não compartilhar com o mais íntimo
dos amigos,se conhecesse alguém nessa condição. Dedicou alguns minutos de seu
tempo à recordações dos bons momentos da meninice,quando por muita vez escapava
ao olhar materno para ir com alguns amigos ao cais.Ficavam por largo tempo a
observar as embarcações em seu ir e vir infinito.O paquete das nove de onde
desembarcava grande número de
estrangeiros,era o mais esperado. Se divertiam observando-os na forma de falar
e trajar.Uns muito sóbrios,outros extravagantes,rindo e gesticulando.Atentos e
curiosos terminavam por aprender alguns vocábulos.
A infância passou qual bólide,os
amigos cresceram,mudaram ,se mudaram,Cristóvão, meigo e tímido,tornou-se
criatura insossa e mequetrefe,olhos e ouvidos, sempre atentos a fariscar qualquer
coisa que lhe pudesse render algum motejo para o resto do dia.Bom parceiro
de patuscadas,mas nada confiável.Rodolfo
Pausinni,filho de italianos,era o mais loquaz,agora discreto,lacônico e
misterioso,este mudou-se do país.O Flávio Augusto,sempre pacato,não mudou
muito.Dóçil e melancólico,meio abemolado apesar da voz grave o olhar ás vezes
distante,como que proposital,deixa ao interlocutor a impressão de pouco
interesse ou total displicência,para logo surpreendê-lo com uma resposta
repleta de alento.Ele, Luiz Otavio dispensa
apresentações.Inconseqüente,doidivanas incorrigível.De família abastada,nunca fora
dado á parcimônia,vivia a dilapidar os bens da família sem sombra de remorso.
Era como se a vida o tivesse transportado da infância para a atualidade
,negaceando-lhe a fase de transição.Não fosse o intermúndio imposto pelo
preconceito,certamente acharia em Flávio um amigo e confidente Enfim,voltemos ao lagar e aos devaneios
de Luiz Otávio.Este seguia afoito o coche da bela estrangeira que certamente
seria acolhida por alguma amiga ou parenta residente em Santa Luz.De fato,
não muito longe dali o coche parou e os recém-chegados foram recebidos por um
casal,com visível afabilidade.
Tomou nota do endereço e retornou
ao alvorecer do dia seguinte,a sege a uma distância segura.A dama de seus
sonhos teria ido á janela umas três vezes.Quatro.Ele havia contado .As
ave-Marias,saiu em companhia da suposta parenta.A sege não as acompanharia em
todo o trajeto.Dar-se -ia por satisfeito fazendo metade do percurso,ou o
suficiente para lhes descobrir o destino.Seguiam em direção à capela.Ele tomou
o caminho de volta.No dia imediato.deixou a sege no mesmo lugar.Desta vez apeou
e seguiu em passeio fortuito pelos a arredores,passando em frente à casa.em
dado momento sentiu seu coração imensa inquietação.Ergueu os olhos.Ela o fitava
da janela.Olhares recíprocos,motivos diferentes.Ela,curiosa.Ele enamorado.Ela
corou. Ele sorriu.Silêncio.Momento azado para as apresentações.” Luiz
Otávio”.Ela sorriu.Ele sentiu-se recompensado.”Geneviève.Estou acompanhando meu
pai.Veio à negócios”.Conversaram algumas veleidades e conveniências.Em poucos
dias obtivera ele permissão para lhe fazer a corte A ela nada disse acerca de
sua ocupação.Ao pai havia dito ter cargo público.Não deixara de todo a
boemia,mas as farras eram cada vez menos freqüentes.Os amigos chegaram a
cogitar a idéia de uma enfermidade.Negava,ria em disfarce.”Até o
boêmio precisa de recesso”.Voltava cedo para casa,ficava horas rememorando a
imagem da moça de semblante quase angelical.O olhar tinha um quê de Pallas
Athena,seu riso era às vezes contido,chegava a iluminar suas faces sem contudo
se aflorar,às vezes corria solto inundando todo seu ser de graça e luz.Fez-se
resoluto.Não faria ouvidos moucos aos sinos da paixão.Em poucos meses deu-se o
enlace.Viajaram logo após a cerimônia,para a suntuosa fazenda que ela recebera
em dote.Notou-a meditativa,monossilábica e reticente.Enleios de
recém-casada,pensou.O tempo,senhor absoluto e por vezes despótico,sem
licença,se adona de tudo,descortinando os mais recônditos segredos sem sombra
de compaixão,dá de ombros e se vai desdenhoso.Luiz Otávio lhe dera os ombros,e
com riso de mofa,por muita vez;era momento de pagar com igual moeda.Ao cabo de
algumas horas,estava ele de volta à casa materna.A sege à uma certa
distância,para não alardear o retorno precoce.Com passos de gato pisando em folha,chegou
finalmente ao lagar..A natureza à vezes titubeia e comete erros.Mas não paga
por eles,para isso se serve dos mortais.Luiz Otávio,que nunca fora de se deixar
atar pelas amarras do desespero,sentia o pânico se avizinhar.A vida sempre
generosa com ele,enfim cobrava seu preço.”Oh ,natureza injusta,por que não a
fizeste mulher?”O riso de menina,alma feminil,jamais seria um rapaz.Ele alí
,desolado e confuso,refém de um capricho dos deuses.Ela,vítima de um engano da
natureza,tão-somente.O riso cândido, as faces de um Querubim,talhe elegante
ainda que de formas generosas,seria toda ela feminina,não fosse aquele
detalhe...que importa a matéria?Amava como mulher,vivia como
mulher,sentia...era uma mulher.Acendeu um cigarro para afugentar as
lembranças.Debalde. A fumaça no ar trazia-lhe imagens diversas com o rosto de
Geneviève.Suspirou.Fechou os olhos com força.Abriu.Caminhou.Parou.A fumaça
tecia figuras para cosê-las em sua
alma,uma à uma,como peças de mosaico.Ânsia de gritar à todo pulmão.Grito
sufocado.Geneviève sorria.O rosto tinha agora feições de uma deusa de olhar
lascivo.Esfregou os olhos.A imagem da deusa ia se desfazendo lentamente até
transmutar-se em efígie diabólica.Apagou o cigarro,caminhou pelo jardim até
agastar-se. Retornou ao lagar. Acendeu outro cigarro.As figuras dançavam no
ar.Insistiam,acossavam,submetia-no à tortura de malho em bigorna.O semblante do anjo se tornara grave.A deusa tinha o olhar
benevolente e estendia-lhe os braços.”sem ela eu não vivo”.O demônio
ria,gargalhava,rodopiava em sua mente apontando outro caminho.”sem mim ela não
vive”.A fumaça tecia o destino .
A casa era silêncio de se ouvir o
cair de uma folha.A família,formada pela mãe já avançada em idade,a irmã,viúva
jovem e um tio,irmão gêmeo da mãe , todos entregues ao sono dos justos,ainda
sob o encanto jubiloso do momento das
núpcias.Somente no dia seguinte trocariam a veste resplandecente da
felicidade pelo inexorável luto e o borbulhar do champagne em cada olhar se
converteria em lágrima no momento em que alguém entrasse no lagar.
Silas Santos
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